“Não-reforma” dos hospitais e serviços centrais está a atrasar reforma da Saúde

Uma das pedras no sapato da reforma dos cuidados de saúde primários é a “não-reforma” dos hospitais e dos serviços centrais e regionais do Ministério da Saúde, bem como dos instrumentos de governação. O Relatório de Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, divulgado quarta-feira, considera os avanços na reforma como um “acontecimento excepcional, tanto no panorama da saúde como no da administração pública portuguesa”. Esta e outras conclusões do relatório, já na 11ª edição, foram ensombradas com a polémica dos tempos de espera para consulta hospitalar, que em 2010 ultrapassam os limites legais em 45% dos casos. Alentejo e Norte não gostaram da fotografia e o PCP usou os indicadores do observatório para um primeiro ataque pós-eleições, considerando os prolongados tempos de espera – resultam da “política de subversão do serviço público” praticada por PS, PSD e CDS-PP, avança o jornal i.

 

O “desfasamento” entre os avanços nos cuidados primários e os avanços noutras instituições de saúde, sejam prestadoras ou gestoras, é considerado um dos “principais obstáculos à mais célere concretização da reforma [dos cuidados primários]”, diz o observatório. Esta reforma é considerada crucial para a melhoria nos indicadores de saúde e sustentabilidade do SNS (com a diminuição das urgências hospitalares e mais prevenção) e mereceu também a atenção da troika, que determina um aumento das USF já no próximo trimestre.

 

Um exemplo da dessincronização, diz ao i Ana Escoval, é a dificuldade nacional em implementar conceitos definidos há mais há 22 anos como é o caso dos “centros de responsabilidade” – sendo que cinco anos, por exemplo, foram o suficiente para fazer vingar o modelos das unidades de saúde familiar nos cuidados de saúde primários (hoje estão em funcionamento 194). A investigadora sublinha que a criação destas unidades funcionais, que permitem uma gestão intermédia de recursos e poupança de recursos e meios nos hospitais, tem sido “sucessivamente adiada”, com aplicações pontuais em Santa Maria, Lisboa, e nos Hospitais de Coimbra.

 

Mas pegando nas críticas mais acesas ao relatório, outro exemplo da dificuldade em lidar com a mudança está na desarticulação e pouca apetência nacional de alimentar e produzir bases de dados transparentes e fidedignas, que permitam avaliar resultados. Sintoma disso, diz a investigadora ao jornal, acaba por ser a polémica gerada pelas tabelas com o incumprimento generalizado dos tempos de espera para consulta hospitalar, definidos em 2007 com a criação do sistema de informação sistema de informação da Consulta a Tempo e Horas.

 

Os investigadores analisaram os tempos de espera dos doentes inscritos para a consulta em 2010 e concluiram que em 45% dos casos os tempos não são cumpridos e os é nos doentes prioritários que há mais deslizes. Nos hospitais do Norte, Alentejo e Algarve o prazo de 30 dias suposto nestes casos é cumprido, em média, em menos de 10% dos casos. A Administração Regional do Norte e a Unidade de Local de Saúde do Baixo Alentejo (ULSBA), que gere o hospital de Beja, já contestaram os resultados. Fernando Araújo, da ARS Norte, diz que os dados “constituem uma distorção grosseira da realidade”. José Manuel Mestre, responsável pela ULSBA, admite mesmo recorrer aos tribunais casos a “afrontosa ofensa não seja corrigida.” Ana Escoval esclareceu que, durante o trabalho, o observatório chamou a atenção para inconsistências que foram corrigidas. “Não inventámos dados, são dados fornecidos pela tutela. Tem de haver uma cultura de maior transparência e monitorização dos dados. Se há incorrecções devem ser corrigidas, mas as bases de dados têm de estar a funcionar.”

 

As incongruências nos números, que foram relacionadas com falhas no sistema usado pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), acabaram por diminuir o debate em torno de outras conclusões do relatório, como o alerta para uma diminuição do consumo de antibióticos ou para os desafios à implementação das medidas definidas pela troika para a saúde, com as quais se espera uma poupança de 550 milhões de euros no SNS. Pedro Lopes, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, diz que podendo haver erros pontuais nos dados sobre tempos de espera, é preciso ver o que os dados reflectem: que o sistema está em implementação e que agora há números para avaliar se as metas definidas em 2007 estão a ser cumpridas e estão ou não a ser cumpridas. Quando à “não-reforma” dos hospitais, o responsável admite que os cuidados primários seguem na linha da frente e que que nos dois momentos do governo socialista, o ministro Correia de Campos foi mais reformistas do que Ana Jorge. “Ficou por fazer muito do trabalho iniciado com a requalificação das urgências e encerramento das maternidades que agora está a ser feito por pressão dos recursos humanos.” Sobre o que aí vem com a troika, Pedro Lopes concorda com o observatório, que por sua vez constata que no geral as medidas foram bem recebidas, lançando para debate a questão: “Porque motivo não foram tomadas antes?” “Todos se identificam com o memorando, todos falamos há anos destas medidas mas ficaram sempre por fazer. Apesar de estar preocupado com o impacto da restrição financeira, têm de ser feitas.” Ana Escoval resume a preocupação: “vai ser preciso uma governação inteligente para que medidas essencialmente financeiras não diminuam os bons indicadores de saúde que adquirimos.”